Caminhos.

setembro 24, 2010

“Nunca é tarde, nunca é demais.

Onde estou? Onde estás?

Meu amor, vem me buscar”

(Bárbara – Chico Buarque)

Tornei minha saudade ainda maior pecando na vontade de olhar, quem sabe uma última vez, quem sabe apenas mais uma vez, o seu caminhar apressado de quem está sempre devendo na pontualidade.

Recorro, novamente, a essa caneta azul e às paginas rabiscadas do meu caderno favorito, que parece que nunca bastam quando tento falar seu nome. Quem sabe vivo um pouco ao teu lado nessas linhas, quem sabe jogando seu nome perdido na folha branca, jogue também a saudade pra longe de mim. Mas, ao mesmo tempo, penso: se a saudade for embora, onde poderei lhe guardar? Você fez casa na saudade, e essa saudade fez residência em meu peito. Vejo essas lembranças estampadas em mim e cuido delas, olho para elas como você costumava me olhar enquanto eu fumava meu cigarro, pra que elas permaneçam aqui, sabendo que, na verdade, a única forma de elas irem embora, é se você voltar.

Meu bem, andei tão triste. Vivendo esse hoje tão longo, e tentando escapar dessa aflição de achar que o nosso ontem foi tão breve. Será que é tarde para contar o quando pensei em você? Ando apressada nos caminhos da memória tentando descobrir quando foi que meus passos foram para um lado e os seus para outro. E procuro descobrir, também, de onde vem essa certeza de que, mesmo assim, você está, ainda, ao meu lado. Como se nossos caminhos estivessem paralelos, se olho pro lado, vejo seu rosto, se olhas pro lado, vê meus olhos. Mas, por destino, ou não, os caminhos não se cruzam.

Lembro daquele verão. Você me contou que, enquanto eu falava, você traçava linhas na areia, como quem traça caminhos. Penso se traçou nossos caminhos na areia daquela praia. Tenho vontade de lhe perguntar: os caminhos se juntavam, assim, no fim? Ou será que enfim, vou ter que, de fato, aceitar você para um lado e eu para o outro? Brinco de botar a culpa em ti. Não me entenda mal, eu sei que não é. Mas será que você traçou nossos destinos separados? Sei que é bobagem minha, mas e se você tivesse unido nossas linhas naqueles traços de areia? Será que você ia estar por perto? Balanço a cabeça, e aceito minha culpa nessa história, mas é muito pesada essa perda que carrego nos ombros. Eu prefiro acreditar que nunca houve escolha pra nós, que o destino era um futuro sem futuro. Prefiro pensar assim, porque dói demais desperdiçar amor. Dói muito ter visto a chance clara e desviado o olhar. Pelo menos pra mim era uma chance clara. Pelo menos pra mim era amor. Chega a doer em meu peito o meu medo de perguntar se chegou a ser amor pra ti. Eu não sei, realmente. Sei apenas que o que sobrou não condiz com a perfeição que eu esperava. Me parecia, assim, tão perfeito encontrar seus olhos em algumas tardes, e parecia tão perfeito seu medo de me tocar,  mãos lado a lado, mas sem se encostar. Sobrou apenas uma angústia solitária aqui dentro.

Às vezes transborda em meu peito uma vontade, quase estúpida de brigar com esse tão cruel destino, e dizer pare ele que já basta de saudade, que eu quero meus passos ao lado do seu andar apressado, que quero saber da sua vida, suas histórias, saber se você insiste em cuidar dessas lembranças estampadas no peito da mesma forma que eu cuido. Outras vezes tenho vontade de brigar comigo mesma. Me pergunto como foi que deixei o meu caminho não ser também o seu caminho? E, raras vezes, tento, ainda, brigar contigo, grito alto pra ver se você me ouve aí no seu mundo, porque foi que você foi embora quando pedi? Por que não ficou me olhando com seus olhos que me trazem tanta segurança até eu entender a falta que sentiria quando você fosse embora levando junto seu olhar.

Encontrei meu corpo junto ao seu nesses labirintos dos sonhos. E, na verdade, não sei se dormia realmente, ou se eram apenas meus pensamentos acordados que sonham tanto em te ter comigo, se perdendo tanto, voando tão alto pensando em você. Já não sei mais quantas vezes me perdi em você, enquanto tento descobrir se realmente perdi você. Caminho nas lembranças, cuidando das memórias, revendo suas fotos, levemente assustada com a possibilidade de, depois de tanto tempo, acabar esquecendo seu rosto, seus traços, seus gestos. Não posso, não quero, não vou esquecer. Cuido das memórias como quem cuida de si mesmo. Quantas vezes me perdi, sozinha no meu mundo, na minha imaginação, inventando mil histórias em que você voltava. E toda vez que, aqui dentro de mim, você volta, como lhe explicar aqueles dias em que fui tão estúpida em fugir pra longe de ti? Como explicar o que nem eu mesma sei? Tive medo, fui covarde, saltei do barco antes de chegar à costa. Quando vi, você já estava tão dentro de mim, tão perto do meu coração, já não podia mais me esconder, já lhe contava histórias que não contava a mais ninguém. Me assustei, pedi, achando que era o certo: vá embora.

E você foi. Foi embora para um lado. Eu caminhei para o outro. Olhei para trás algumas vezes, tentando ver se você não fazia mesmo. Olhei tentando ver seus olhos de novo. Você não olhou. Olhei mais uma vez, e me perguntei se minha angústia é segredo pra ti. Ou se ela está estampada na minha cara do mesmo jeito que está estampada aqui dentro.

Guardo as memórias como se elas já fossem pedaço de mim. E guardo em mim essa dúvida que se ascende aqui dentro ao lembrar o seu cheiro, as suas coisas, os momentos em que meu corpo esteve sobre o teu. Guardo aqui, tal qual a saudade. E da mesma forma que a saudade não passa, a duvida não vira certeza. Queria lhe perguntar pra ver se sua segurança me traz alguma convicção de que ainda não é tarde. Você foi embora há tanto tempo, e eu vivi tanto sem te ter ao meu lado. Conheci a vigília, o sono, os sonhos, os labirintos da razão, e conheci ainda mais os labirintos do meu peito, enquanto te procurava aqui dentro. Sinto que continuo caminhando pelos caminhos que você traçou, e cada passo que dou, sem por que nem quando, cada cigarro que fumo, sinto seus olhos me observando como daquela vez. É tarde pra pedir que você deixe eu descansar meu olhar nos teus olhos? Queria dizer que quando te vi aí tão longe, quando olhei pra trás e percebi que seus olhos não me perseguiam mais, eu me assustei. E se agora eu pedir: Volta.  Será que é tarde?


Garçom, sem gelo.

setembro 24, 2010

Ele trazia no peito o peso de um caso de amor fracassado. E eu trazia nas mãos uma carreira de escritor promissora, ou pelo menos era isso que me diziam. Mas não nos encontramos de imediato. E, talvez, melhor assim, pois se seus olhos me tocassem logo no primeiro instante em que entrei naquele bar, talvez pensássemos que era apenas um acaso e desviaríamos o olhar, procurando alguma outra coisa que pudesse nos encantar. Então, talvez para evitar desencantos prematuros, logo que entrei, ele não teve sua atenção desviada do que estava fazendo para admirar os meus passos naquele chão de madeira. Continuou atento ao cinzeiro de pedra lotado de cinzas e filtros de cigarros.

Eu andei devagar até o balcão. Sentei e pensei em pedir uma cerveja, mas acabei com um whisky com gelo na minha frente. Porque uma cerveja não iria bastar, e um whisky sem gelo já era demais. E foi só quando o garçom depositou o copo em minha frente, que o outro levantou o olhar. Ele também bebia whisky, mas sem gelo, para enfrentar o seu caso de amor fracassado. E com o olhar desviado do cinzeiro ele pôde finalmente levantar a cabeça e então nos encaramos. E foi só a partir daí que eu pude sentir um pequeno ferimento no meu peito, como se um pequeno espinho estivesse sendo pressionado devagar sob minha pele. Na hora não entendi o que era aquele pequeno ferimento, mas senti como se o sangue estivesse realmente caindo pelo meu peito.

Naquele momento, eu não saberia dizer o que ele guardava naquele olhar que fazia meu peito sangrar de leve, e talvez nunca viria a entender. Mas sei que ele me olhava de um jeito que até a minha alma sentiu-se observada. E foi só depois que nosso olhar se quebrou que eu pude me aproximar. Fui até a mesa mais do canto do bar e perguntei se podia sentar. Ele balançou a cabeça olhando pra cadeira vaga como quem concorda. E, então, trocamos algumas palavras que sempre são usadas por duas pessoas, com esperanças derrotadas, que estão tentando saber um pouco mais da tristeza do outro.

Ele me perguntou o que eu fazia. Eu falei que escrevia. Então houve uma grande pausa em que ele parou e fumou quase um cigarro inteiro, até que me perguntou:
– E sobre o que você escreve?
– Sobre desencantos.
– Eu devo carregar desencantos suficientes pra escrever um livro.
– E você acha que isso basta pra escrever?
– Não é isso que você faz? Vive um desencanto e se põe a escrever sobre ele?
– Claro. Mas não acho que seja suficiente. Me faltam dedos pra contar quantos desencantos já tive, mas mesmo assim ainda acredito no meu coração. Você acha que consegue fazer isso? Gastar o coração e continuar a sentir ele batendo? Matar as esperanças e mesmo assim conseguir escrever uma história de amor?
– Nunca soube se desisti do meu coração, ou se ele é que desistiu de mim. Resisti até a última gota de água se extinguir no deserto do meu peito. A gente agüenta por um tempo, sabe. Mas o coração vai secando. Até que uma hora a gente se acostuma com a sede. Não é que a sede acabe…a sede continua. Mas a gente cansa de alimentar desencantos…
Parei, então, para observá-lo. Ele tragava lentamente o cigarro e a cada gole em seu whisky ele fazia uma cara de quem realmente sentia aquela bebida descer rasgando a garganta. Ele apagou o cigarro e continuou:
– Como você consegue? Falar de amor vivendo em um mundo de corações escuros? Eu já me dei por vencido na batalha de procurar alguma luz. Dentro de mim, dentro de você… é tudo escuro.
– Isso não é verdade. Por mais que o peito cale, ainda resta uma luz. As pessoas cansam de alimentar desencantos, mas no fim sempre há luz. Dentro de mim, dentro de você. O cigarro que você apagou pode ser re-aceso. A gente quer a luz pra enxergar no meio de corações escuros, um encanto pra depois se desencantar. Ninguém agüenta viver na escuridão eternamente. A gente quer luz.
– Ou sombra.

Eu fiquei em silêncio. Ele se levantou e tirou alguns trocados do bolso e mandou eu pagar a conta pra ele.
– Você tem uma caneta?
Eu entreguei a caneta. Ele rabiscou algumas palavras em um guardanapo. Depois me entregou e disse:
– Isso é pra você parar de alimentar seus desencantos. Depois vai pra casa e escreve alguma coisa sobre um garoto que não conhecia a luz.
Ele saiu pela porta do bar e eu desdobrei o guardanapo:

“Importante é a escuridão que nos revira os olhos. Quem enxerga muita luz só olha para fora. A sombra nos obriga a ir procurar luz em outro lugar. E tentamos achá-la no nosso próprio peito, mas não encontramos. Importante é a sombra que nos faz olhar para dentro do peito. Importante é a escuridão que faz a gente perceber o escuro de cada coração.”
Pensei que talvez ele realmente tivesse desencantos suficientes. A última faísca do cigarro que ele havia depositado no cinzeiro se apagou. E eu revirei meus olhos, procurando algum resto de luz. Não encontrei. Levantei a mão segurando meu copo de whisky que agora estava vazio. Balancei o copo no alto:
– Garçom, sem gelo, por favor.


A morte a cada dia que amanhece.

setembro 24, 2010

Pontada fina no peito, tenho tido com freqüência. Semana que vem vou ao médico, sem falta. Da última vez que eu fui acharam uma mancha preta no meu pulmão, fiquei com medo e não voltei na semana seguinte como o médico tinha mandado. Devia ter voltado, mas tive medo. Logo depois da pontada, três bêbados na rua. Por um momento tive a impressão estranha de que eu era um deles. Gritaram qualquer besteira, não consegui ouvir. Li esses dias em algum lugar que a surdez era o novo sintoma da aids. Não volto no médico por nada.
6 da manhã. Passo devagar a a língua entre os dentes, um dente quebrado e não lembro como, não sei nem se foi ontem.
Na verdade, pensando bem, não sei onde estou. Levanto e quase caio novemente. Uma tontura bate na minha cabeça. Devia perguntar pro médico o que é isso também. Mas não volto. E tenho medo que ele me diga que é sintoma de uma doença rara sem cura. Ou pior, diga que é coisa da minha cabeça. Lavo a cara, mas a alma não lavo de jeito nenhum. Vejo o dia cinza pela janela desse último quarto do corredor de algum hotel, e finjo que não ouço a mulher do quarto do lado gritando de prazer com o marido, ou vai ver que é uma prostituta, sei lá.
A tontura, o dente quebrado, uma mancha no pulmão, e desconfio de uma outra no coração. Ah, são tantos sintomas, os traumatismos, os cortes, os arranhões, os meus gritos, a morte a cada dia que amanhece. E uma solidão que eu acho que não é sintoma, é simplesmente parte de mim e desse quarto vazio. Também tem essa tosse que não pára nunca. A tosse é sintoma da solidão, eu acho, porque o cigarro eu sei que é, a tosse deve ser também. Tenho que parar.

Já são três coisas, um médico pra aquela mancha, um dentista para o dente quebrado, e alguma coisa que me faça parar de fumar. Ah, deixa pra lá. Acendo um cigarro e tusso três vezes. Se eu parasse de fumar a mancha desapareceria eu acho, ela era pequeninha. Sim, eu posso fazer essa coisa desaparecer, mas e da mancha no coração, quem é que vai cuidar?

A janela desse hotel não abre e eu só posso ver as coisas pelo vidro. Essa vida inteira me cai como uma tempestade. Me recuso a olhar pra fora e ver todos esses urbanóides loucos correndo pra agradar o sistema. Me recuso a olhar pra fora, mas te busco nos quatro cantos dessa cidade superficial, que não faço questão de conhecer. Te busco nessas ruas, ao telefone, em telegramas, cartas, aeroportos. E não acho. Então encho a cara no bar da esquina, beijo estranhos enquanto rasgo as noites em que eu sei que você não está. Parto em lágrimas por ruas que nunca vi, e choro em ombros que não conheço. E grito os sintomas da minha solidão, enquanto desejo e imploro um final feliz.

Volto pro último quarto do hotel e imploro ao porteiro, por favor, me diz que o telefone tocou, que a ligação era interurbana, e que alguém soluçava do outro lado da linha querendo me encontrar. Mas nada. Nem telefonema, nem carta, nem esperança. E eu me sinto como um quarto vazio no fim do corredor de um hotel de uma cidade que eu não conheço. Ligo a TV, e não sei o que procuro com essa porra desse controle-remoto. Desligo a TV. Bebo, bebo, bebo, fumo além da conta no que sobrou de um fundo de poço. Essa janela que não abre, a fumaça toma conta. A tontura, dessa vez não é sintoma, é bebida. Passo a língua entre os dentes. Uma pontada no peito. Lembro da mancha no pulmão, mas não apago o cigarro. Te busco em qualquer lugar dentro de mim.

Essas tonturas vão continuar. Eu não sei o que que é. Alguém me diz. Diz também, essa mancha no peito, quem é que tira?

Acho que não duro muito mais que isso.


Estrelas de Agosto

setembro 24, 2010

Ainda não era agosto, embora, dentro dele, quase sempre fosse essa época de desgosto. Mas fora dele ainda não. E a noite naquela cidade ia caindo aos poucos em ritmo de samba. Ele se levantou do sofá e caminhou lentamente em direção à janela para admirar as luzes das salas de estar de seus vizinhos que iam se apagando, enquanto todo mundo arrumava-se para sair de casa. Algumas continuavam acesas e ele pensou em gritar para estes que ainda não era agosto e a noite ia caindo em ritmo de samba. Depois repetiu para si mesmo essas mesmas palavras que pensou em gritar. Repetiu baixinho ao pé de seu próprio ouvido, enquanto servia duas taças de vinho: uma para ele e outra para ninguém.

Sentou-se na cadeira na ponta da mesa nova que ele havia comprado recentemente. Era de alguma madeira cara importada de algum país da Europa. Pensou nos dias inteiros de trabalho doados àquela empresa recentemente privatizada pelo governo, e pensou se valia a pena tanto esforço pra dividir a recompensa com apenas uma taça de vinho e ninguém para segurá-la. Lembrou-se de Fernando Pessoa e as lágrimas de Portugal. E disse a si mesmo que sua alma devia ser pequena demais, então, já que há muito tempo sentia sua vida acabar toda vez que lavava o rosto de manhã. Estendeu a mão e brindou sua taça com a taça de vinho apoiada na mesa. A taça tombou e o vinho tinto foi caindo como sangue e, por um momento, ele desejou que aquele sangue derramado fosse dele. Pensou em só se preocupar com isso amanhã, quando agosto chegasse.
Acendeu um cigarro e sentiu uma azia que ele não tinha certeza se era pelo vinho ou pelo mal-estar que já fazia parte do seu corpo. É o vinho. E serviu um pouco mais em sua taça, e um pouco mais na taça de ninguém. Por um breve momento, em que a consciência resolveu falar com ele, depois de tanto tempo sem dar as caras, ele achou que estava louco, servindo vinho pra ninguém e sussurrando sambas em seu próprio ouvido. Mas depois pensou que devia ser só agosto anunciando sua chegada em diferentes formas de solidão. Deteve-se no pensamento sobre a solidão por algum tempo. Deteve-se dentro de si mesmo, do mesmo jeito que alguém que ama detém-se nos olhos da pessoa amada.

So-li-dão.

Repetiu a palavra em sussurros separando bem as sílabas como quem divide um texto tentando entendê-lo melhor, com um cigarro aceso entre seus dedos, e duas taças de vinho em sua frente. Estado de quem está só. E tentando se confortar gritou bem alto perguntando pra ninguém ouvir, afinal, quem não está sozinho? Algumas pessoas disfarçam melhor. Ele já havia cansado de disfarces e moveu sua mão até seu rosto sem nenhuma máscara com marcas de tristeza estampadas por todo seu semblante, que iam ficando mais fortes de acordo com o tempo.
Contornou os traços do seu próprio rosto com os dedos. Nunca havia feito isso antes, e foi descendo pelo seu pescoço, passando para o peito, onde parou de repente pra tentar escutar seu próprio coração. Com os dedos esticados contornou seu corpo inteiro delicadamente, como se guardasse um certo receio de si mesmo. Achando que se seus dedos tocassem sua pele com um pouco mais de vigor, ele se quebraria em pedaços. Sim, estou frágil, pensou. E então, com toda delicadeza contornou seu corpo como quem faz um desenho no ar, ou como quem toca em um corpo nu pela primeira vez. E concluiu sua nudez por trás de seu silêncio. Mas um silêncio que não era ausência de palavras, era simplesmente a ausência de máscaras. Era uma nudez, um silêncio, deixando transparecer qualquer segredo. Era seu pensamento querendo alguém para decifrar a sua simplicidade pela falta de disfarces Era a fala engasgada demonstrando a angústia estampada no calendário que marcava dia 31 de Julho. E ele pensou que talvez estivesse louco, contornando o próprio corpo e sentindo angustia só por olhar o calendário. Mas depois pensou que devia ser só agosto anunciando sua chegada em diferentes formas de desespero. Tentou se recompor, disse a si mesmo que não se desesperasse. Levantou-se fechando o casaco que havia aberto para poder contornar o próprio peito. Apagou o cigarro e disse a si mesmo que precisava de mais vinho.
Dirigiu-se até a geladeira, tropeçando em seus próprios pés pelo vinho que já fazia efeito em sua cabeça. No meio do caminho olhou de relance para o espelho do banheiro, mas desviou o olhar. É preciso muita coragem pra se mirar no espelho em uma véspera de agosto, pensou. E seguiu em frente querendo esquecer o pequeno olhar que o espelho refletiu. Depois concluiu que era impossível esquecer alguns olhares, principalmente aqueles tristes, e mais ainda, seu próprio olhar refletido no espelho. As pálpebras se fechando, por razões que ele ainda não sabia se era sono ou tristeza, ou as duas coisas. Um brilho de leve fingindo que ainda acreditava em esperança, ou então, talvez fosse só a água em seus olhos que se preparava para escorrer pelo seu rosto. Mentiu, por fim, a si mesmo, dizendo que deviam ser lágrimas de esperança, e piscou os olhos deixando a lágrima cair, sem saber exatamente o verdadeiro motivo de porque aquela água rolava pelo seu rosto. Tentando entender, resolveu se encarar no espelho. Adiou um pouco ainda o encontro consigo mesmo, abriu a porta da geladeira e só achou meia garrafa de vodka. E a essa altura tudo bem. Pegou mais dois copos, e serviu um pouco em cada um, e brindou mais uma vez com alguém que não estava ali. Aproximou-se do espelho, encostou os dois copos na pia, e passou de leve suas mãos pelo mármore, ainda de cabeça baixa. Suspirou fundo, pronto pra se encarar. Ergueu devagar a cabeça. Mirou os seus próprios olhos na fronteira de seu olhar. Admirou seu rosto com feridas consagradas de invernos que passaram. E pensou que antes não era assim. Não sabia exatamente antes do que ou de quem. Mas afirmou assim meio perdido apenas antes. Via seu rosto menos triste antigamente. Antigamente quando? Não sabia direito. Mas não tinha essas feridas em sua boca, nem essas marcas de noites sem dormir, muito menos esse caráter cansado em seus olhos de quem viveu demais mesmo sem viver nada. Vivendo muito em tão pouco. Como se cada detalhe de alguma coisa que dá errado lhe custasse um pouco de sua vida. Mas claro que todo mundo cansa, pensou. Claro que chega uma hora em que é preciso estar cansado, deitar sozinho de madrugada e chorar baixinho, sem querer alguém pra lhe consolar. Mas, pra grande parte das pessoas, esse estar cansado viria seguido da palavra ‘eventualmente’ ou ‘às vezes’ ou em alguns casos até um ‘raramente’. Mas, então, será que tudo bem esse estar cansado ser meu estado natural?

As palavras vagavam pela sua cabeça e, às vezes, quando ele se distraía, elas saíam ardendo de sua boca e se perdiam pelo apartamento vazio. Bebeu mais. Acendeu outro cigarro e de repente viu seu rosto perdendo a forma no espelho, as linhas foram perdendo a intensidade e desaparecendo. E quando seu reflexo desapareceu totalmente, ele achou que talvez estivesse morto e sentiu de perto o frio. Mas depois pensou que devia ser só agosto anunciando sua chegada em diferentes formas de morte.
Caminhou letamente até a janela novamente. Tragou o cigarro e suspirou, soltando a fumaça, dando uma espécie de boas-vindas àquele mês que estava chegando. Mas depois se questionou dizendo que, na verdade, era como se agosto estivesse ali, do seu lado, naquele instante, e o tempo inteiro que havia passado. Ele servira vinho pra dividir com aquele mês de desgosto. E até tinha admirado o sangue de agosto escorrer derramado de cima de sua mesa nova. Olhara agosto refletido ao seu lado no espelho. E sentia toda hora. Chegando cada vez mais perto. Até que percebeu que aqueles sintomas não eram mais anúncios de chegada. Agosto havia chegado, trazendo uma espécie de loucura, de desespero, de solidão, uma espécie de morte e um lamento que ele sabia que ia durar mais trinta dias. Dirigiu seus olhos para o lado de fora e olhou o primeiro dia de agosto que aterrisava aos poucos em cada centímetro daquela cidade. Sim, pensou, agosto finalmente havia chegado pra lhe fazer companhia. E agora sim, ele sentia em cada pedaço de seu corpo, que ele havia contornado com tanto cuidado, feridas consagradas de invernos passados. Passou a mão nas feridas com o espanto de quem vê a dor pela primeira vez. Levantou a cabeça e viu uma estrela passando no céu. Esticou a mão cheia de feridas abertas, segurou firme e trouxe a estrela pra bem perto de si. Lembrou que sempre lhe diziam que quando as estrelas passam correndo deve-se fazer um pedido. Olhou a estrela bem de perto com os olhos ofuscados de tanto brilho, e disse baixinho:
– Faz agosto passar depressa.
A estrela sorriu. Disse que não podia mexer nas horas. E o tempo passa sempre no mesmo compasso. Mas olhando bem dentro dos olhos dele, ela prometeu que mais cedo ou mais tarde iria passar. Ele sorriu aliviado. Soltou a estrela, mas ela continuo em sua mão por algum tempo, e depois foi se dirigindo lentamente até ficar lado a lado com seu rosto, no qual se deteve brevemente. Naquele rosto de tristezas estampadas pelo tempo. Ele continuou olhando pra frente, estático admirando todas estrelas no céu, até que ouviu uma canção declamada baixinho em seu ouvido. Olhou para o lado e viu a estrela ali cantando. Era quase um samba. Ela repetia várias vezes de forma tão delicada que ficava fácil acreditar:
– Agosto vai passar, agosto vai passar…

Ele olhou de novo pro céu e viu mil estrelas pulsando em solidão lá em cima, enquanto seu coração pulsava aliviado lá embaixo. Ele sorriu e agarrou novamente a estrela, botando-a bem perto de seu peito como quem aceita o tempo de cada coisa. Fechou os olhos e cantou junto com a estrela aquele quase-samba e se permitiu acreditar. Acreditar que atrás da loucura, da solidão, do desespero, e atrás até da morte, sempre vai existir uma estrela cantando esperanças. Agosto vai passar… Sim, agosto vai passar…


Uma flor

setembro 16, 2010

Uma flor. Uma flor que eu queria poder chamar de minha. Mas acho que nunca voltará a ser, e até hoje, me pergunto angustiada se algum dia chegou a ser. Uma flor ainda encabulada teimando em não desabrochar. Guardada embaixo de suas próprias pétalas. Presa ao chão por seu caule infatigável que insiste sempre e imóvel em prendê-la ao chão, incapacitando-a de sonhar. Será que algum dia, finalmente, irá desabrochar? E quando desabrochar? E se finalmente vier ao mundo? Abrir os olhos, o peito, o sorriso? Meu deus, e aquele sorriso? Será que meu coração será capaz de fazer aquele sorriso sorrir? E se não for? E se meu toque fizer seus ombros irem aos poucos se encurvando cada vez mais? E se aquele meu toque, que, por erro meu, acabou sendo forte demais, fez com que ela se fechasse de vez?

Queria lhe explicar dos meus erros, meus enganos que acabaram sendo mais errados do que minha consciência consegue suportar. Queria contar que se eu pudesse voltar no tempo, daria-lhe apenas aquele toque de leve, carregado de amor. Mas assim como não se deve nunca escutar as flores, as flores também não gostam de escutar. E seguem sozinhas sem falar, ouvir, e muitas vezes até sem desabrochar. E por nunca poder explicar, por nunca poder abrir seus ouvidos para fazê-la ouvir, um erro meu, ou seu, acaba sempre podendo ser o erro final.

Trago ao lado dos meus olhos que te olham com tanta atenção, um medo estampado que insiste em não ir embora. Uma voz gravada na minha cabeça repetindo tantas vezes que não consigo nem mais contar. Uma voz triste que as vezes eu confundo com a voz da própria flor que olho. Dizendo, me lembrando a cada segundo, insistindo para que eu não esqueça que todas as flores que não desabrocham acabam morrendo aos poucos. E eu balanço minha cabeça querendo fazer com que aquela voz se desprenda de mim. E repito pra mim mesma para que eu tenha calma, que minha flor não pode morrer, que eu devo lhe dar mais tempo, mais água, mais sol e mais amor, pra que um dia ela finalmente venha a desabrochar.

Ah, e se eu pudesse passar por cima da teimosia das flores e fizesse com que ela parasse para me escutar? Contaria-lhe com calma que, se necessário, faria igual àquele principezinho que carrego já tatuado em mim para que eu nunca me esqueça de cuidar daquilo que amo. E se eu lhe disser que faço igual? Que percorro planetas, universos, desertos inteiros até encontrar uma caixa que traga dentro dela o que for necessário para lhe proteger. Passo dias ao seu lado, te guardo embaixo de uma redoma. Te guardo dentro do meu peito para que meu coração, para que todo amor que guardo aqui, possa te proteger. Pois mesmo se tudo se perder, mesmo que o resto do mundo tenha se perdido, mesmo que você, aí dentro de suas pétalas, aí presa por seu caule infatigável, mesmo que até você tenha se perdido aí presa no seu próprio mundo, o meu amor, o meu coração não se perdem mais. Estão no caminho certo, na estrada certa, sempre em sua direção.

Espero um dia conseguir. Espero poder lhe falar, lhe mostrar, quem sabe arrancar de vez esse caule que te prende, para que você possa voltar a sonhar. Levar cada uma de suas pétalas ao céu, e depois até o fundo mais fundo que puder encontrar em mim, para ver se você me permite chegar no fundo mais fundo que há em ti. Permitir que sua beleza de flor me deixe sorrir, para que talvez desse sorriso, teu sorriso também venha a surgir. E aí sim, abrir o sorriso, o peito, as pétalas, e finalmente, quando estiver completamente madura, abrir enfim o coração.

Sei bem que cada flor tem seu tempo, e que é impossível adiantar a primavera. E sei também que antes da primavera as flores devem sobreviver ao inverno e ao outono. Mas prometo que te guardo, te protejo no meu peito por todas as estações que vierem. E mesmo que demore, mesmo que eu tenha que encarar demoradas primaveras sem ver o sorriso da flor que mais desejo. Mesmo que venha a ser a ultima flor ainda fechada no jardim, tenho certeza que quando desabrochar será a mais bonita de todas.


A Biblioteca da Memória.

setembro 2, 2010

Estendi a mão até o outro lado da mesa, como fiz tantas vezes ainda naquela época em que sua mão guardava algum calor, e sua boca, um sorriso. Com uma pequena diferença de que antigamente, estendia a mão para te alcançar, e isso já bastava. Hoje em dia nem sei mais porque ainda o faço. Sem encontrar suas mãos, e nem ao menos um calor que pudesse ter restado, não pude evitar revirar os olhos para dentro e, sem ao menos procurar, encontrar aquela única porta que, por mais que tentemos, nunca conseguiremos fechar. A nunca esquecida, que não permite que as dores evaporem, biblioteca da memória. Onde tento etiquetar lembranças, rotulando as que devo ou não devo recordar. Só esqueço sempre que essa biblioteca é viva e se quiser, arranca toda e qualquer etiqueta e joga as lembranças que eu preferia esquecer direto para o hemisfério esquerdo do meu cérebro que me mostra as imagens como se essas estivessem acontecendo agora, bem ali no horizonte do meu olhar. E faz questão de jogar os meus livros de recordações sempre para o lado esquerdo que, infelizmente, é, também, o hemisfério que se encarrega das dores.

Não sei por que ainda me surpreendo que entre tantas lembranças e dores, você é, ainda, a que mais insiste em aparecer. E, como não poderia deixar de ser, a que mais teima em doer. Tendo ainda, boba, achar uma explicação pro inexplicável. E penso que as coisas só acontecem assim, só doem assim, porque fiz questão de fazer de tudo, lembrança. Desde seu sorriso mais bonito até o jeito como você segurava o cigarro. E, ainda, guardei tudo fazendo questão de etiquetar como a lembrança mais bonita que vivi, fazendo meu bibliotecário acreditar que ainda quero lembrar.

Que grande inocência essa minha de esperar tanto de alguém. Sei que você nunca foi porto seguro, mas ancorei meu barco no teu cais. Sei que você nunca foi farol nesse mundo escuro. Sei que só encontrou sua residência ao nunca ter nenhum lugar. Sei que na verdade você nunca procurou consertar seu coração partido. Mas eu fiz do meu partido consertar seu coração. Se afogou na primeira onda, nunca conheceu o mar. Enquanto eu continuo navegando na onda onde muita gente naufragou.

Ah, que grandessíssimos idiotas fomos. Nos entregamos tanto… Guardei o que era meu tão fundo no teu peito, e você guardou o que era seu no lugar mais profundo que conseguiu encontrar no meu coração. Que na hora de devolver o que era do outro, não conseguimos encontrar. Guardei um pedaço seu que dói sempre. Guardou um pedaço meu que imagino que ainda lateje em silêncio. Estendo a mão devagar, arrastando os dedos centímetro por centímetro, esperando que tornando o trajeto mais demorado, talvez você apareça antes de minha mão chegar ao outro lado. Não sei porque ainda guardo em meu peito essas ilusões.

Ah, que grandessíssimos idiotas fomos em acreditar que era algo além disso. Como dizer que é concreto algo invisível, intocável? Como guardar o amor no peito se não posso nem ao menos tomá-lo primeiro em minhas mãos?

Não. Não me venham com as teorias de que o sentimos, sabemos que está ali. Desde pequenos vemos sempre com a mão. Aprendemos a não tocar no fogo só depois de nos queimarmos. Levamos sempre primeiro às mãos ao objeto, para que depois possamos levá-lo até os olhos.

Nunca vi amor nenhum correndo em minha direção, mas corri feito louca atrás dele durante todo esse tempo. Claro que em todas as vezes que parei ao seu lado para descansar à sombra fizeram vales minhas pernas cansadas. Mas se o descanso não tira mais a dor do corpo, se o coração já cansou de correr sem direção, o que faço agora? Sento a mesa e procuro suas mãos ao lado das minhas.

Minhas mãos bobas de criança que precisam tocar para acreditar que não te vêem mais. Não te alcanço mais nessa mesa, nessa vida, nesse pouco que sobrou. Não te alcanço. E mesmo assim, minha esperança boba de criança ainda espera te alcançar. Espero te alcançar, mas te escrever, hoje, me dói como se a caneta fosse lâmina e essa folha fosse pele. Estico meu braço até distender cada um dos músculos. Penso que talvez você esteja um pouco mais longe. Talvez se eu estender um pouco mais meu braço já tão cansado de te procurar. Não encontro. Até que entendo que hoje você só se encontra aqui dentro da minha biblioteca.  Ou talvez nem isso.

Estendo a mão até o outro lado. Devagar arrasto minha mão pela tábua de madeira. Estendo minha mão esquecendo a fé que um dia tive. Estendo a mão nessa mesa vazia. Reviro os olhos e navego no mar das lembranças que já nem sei se vivi. Penso se ilusão é lembrança ou se minha memória ainda insiste em brincar com minha inocência. Minha memória ainda me engana. Ilusão não é lembrança e acho que suas mãos nunca vieram arrastando-se do outro lado em minha direção. Viro os olhos procurando algo que seja realmente lembrança. Não encontro. Estendo a mão devagar até o outro lado da minha memória. Estendo minha própria alma ao longo de todo meu corpo sem encontrar. Até o outro lado da memória, nessa biblioteca… vazia.


O amor é uma tragédia

junho 9, 2010

Meus dedos encostaram nos teus como se aquilo fosse um acidente premeditado. Acidente porque nós já havíamos tentado amar uma vez e sabíamos que seria impossível que tivesse nos sobrado alguma força para tentar de novo. Sabíamos do erro, da imprecisão, sabíamos que não deveria ser. Acho que se fossemos comparar, meu amor havia sido maior que o teu, minha entrega, o dobro da tua. Mas agora não importava o tamanho do amor que cercava cada um de nós. Agora era simplesmente meus dedos encostando os teus, sem importar quem de nós tinha dado o primeiro passo. Acho que se fossemos analisar, seria assim: eu conseguia amar, mas não queria; você queria, queria desesperadamente, mas não podia, não conseguia. Mas agora não importava mais a calma ou o desespero. Era simplesmente um acidente que meus dedos tivessem tocado os teus, sem importar a hora exata ou a capacidade de amar dentro de nós.

Mas não deixava de ser premeditado, pois eu pousei de leve a minha mão em cima da mesa querendo te tocar, e você imitou meu movimento querendo me tocar. E nossos dedos foram se aproximando aos poucos, enquanto as horas se mexiam. E nenhum dos braços se contraiu, tentando frear o acidente. Nenhuma palavra de perdão saiu de nossas bocas, tentando disfarçar a vontade de tocar. Nada aconteceu para fingir que aquilo não era uma escolha. Nossos dedos não se encolheram de leve quando se tocaram. E aquilo foi simplesmente acontecendo, sem que nenhum de nós parasse para teorizar o que poderia acontecer no instante seguinte. Como um carro beirando um penhasco sem que o motorista tire o pé do acelerador.

Enfim, meus dedos tocaram os teus, ou seus dedos tocaram os meus, em um gesto leve e delicado e ao mesmo tempo de forma tão brusca que eu não poderia mais dizer se havia sido apenas um toque ou o presságio de uma tragédia que viria logo a seguir. E bateu em mim, e acredito que em ti também, uma lufada de sentimentos tão firme, tão forte, daquelas de dilacerar o mais puro coração. Mas sendo um toque, uma tragédia ou, até, talvez, uma nova tentativa de amar, de um jeito ou de outro nossos dedos se tocaram. E eu levantei minha cabeça e, novamente, você imitou meu movimento e dessa vez foram nossos olhos que se tocaram. E eu, em meio ao desespero, não podia dizer se aqueles olhos que miravam os meus guardavam rancor ou esperança. Não podia dizer se era tristeza pela primeira tentativa que falhou, ou se era felicidade pelo que aquele movimento inicial, de botar a mão mesa, guardava. Não podia dizer se aqueles dedos que tocavam os meus, querendo e não querendo tocar, guardavam receio ou vontade. E também não saberia dizer se aquele sentimento que se instalava em mim era leve ou pesado, bom ou ruim, ódio ou amor. E àquela altura eu não sabia mais que sentimento eu queria dentro de mim e nem sabia mais o que era certo ou errado. Não queria amar, não queria odiar, não queria nada a não ser ficar olhando seus olhos em um quase-ódio, em um quase-amor, enquanto meus dedos tocavam os teus em um movimento leve e delicado, ou em um movimento firme e forte, capaz de dilacerar o meu e o seu coração.

E ficamos em silêncio com os dedos encostados e os corações dilacerados. Ficamos em silêncio em um desespero de voltar a tentar, de voltar a amar. Ficamos em silêncio, pois sabíamos que se um de nós falasse alguma coisa teríamos que teorizar aquele toque, aqueles olhos se olhando em um quase-amor, em um quase-ódio de não saber o próximo passo. Sabíamos que se começássemos a falar teríamos que teorizar vontades, mas não queríamos e nem podíamos mais aguentar a tristeza das palavras que tentam explicar o inexplicável. E por mais que fosse apenas um pequeno toque sabíamos que aquilo era grande demais para não significar nada.

Mas ficamos em silêncio. E eu esperava que de alguma forma aquele acidente, aqueles olhares cruzados, virassem logo uma tragédia. E que aos poucos meus olhos fossem se fechando e seu corpo fosse se movendo para cima do meu corpo, e nossos lábios fossem se encostando, e aquela tragédia fosse se encaminhando, levemente, para tornar-se realidade. Eu queria chegar ao ponto em que eu fosse aquele motorista do carro, beirando ao abismo, que tenta frear no último momento, mas aí já é tarde, a tragédia está feita, o carro está caindo e nossos lábios já se tornaram uma coisa só. E nesse momento eu ouviria um pequeno estalo na minha cabeça que diria que enfim aquele acidente virou tragédia, e não só nossos dedos e olhares se tocavam, mas sim nossos corpos, nossos corações dilacerados, pelo toque inicial. E o estalo me lembraria da incapacidade que eu teria de me guiar a partir daí. Pois faltava teoria dentro de mim, e eu precisava que algo me explicasse o que era aquele toque. E por não saber explicar, fiquei em silêncio, esperando que você desse o primeiro passo, e ao mesmo tempo, sem querer que aquele instante chegasse a um fim.

Você piscou os olhos, e nosso olhar se quebrou. E eu pensei que talvez aquele fosse o próximo passo. Pensei que talvez fosse apenas isso. Nossos dedos se encostaram e o próximo passo era nada. Eu tinha duas possibilidades em minhas mãos, e você fazia questão de encostar na ponta dos dedos onde elas estavam. E minha vontade era de dizer me perdoe, por favor, mas será que você pode segurar firme em minha mão, e depois ir soltando aos poucos para eu ver se uma das possibilidades cai no chão, e talvez, assim a outra fique estática grudada em mim, e aí já está escolhido. Pois meu coração está dilacerado, querida, meus olhos não suportam mais te olhar e meu braço está inquieto desde que seus dedos encostaram os meus. E talvez, eu tenha chegado a dizer, mas estava tão concentrada no meu pânico de te-tocar-ou-não que não soube se disse tudo isso ou só pensei em dizer.

Mas sei que seu braço foi se mexendo e seus dedos deixando de encostar os meus e passando aos poucos pelas minhas articulações até chegar à palma de minha mão, e continuo subindo ou descendo até meu pulso, onde me segurou como quem segura um punhal e foi me puxando por cima da mesa, por cima do seu corpo, por cima do meu pânico, até eu estar estendida, estática, em cima de você, sentindo o seu coração que batia tão forte, tão firme. E você botou a mão em meu peito, olhando nos meus olhos, como se procurasse um batimento, mas não sei se corações dilacerados costumam bater, e já havia tempo que eu não parava para sentir meu coração pulsando dentro de mim.

Mas, mesmo sem a certeza da pulsação dentro do meu peito, você foi se aproximando, e segurou meu outro pulso, enquanto eu continuava a sentir o pulsar do seu peito e a pensar se corações dilacerados batem ou não. E você foi se aproximando como eu tanto imaginei. E veio a minha cabeça a vontade de sair correndo, pois não tinha mais forças para amar. Mas quando me dei conta disso, e tentei frear, já era tarde demais. O carro caía penhasco a baixo e meus lábios estavam próximos demais dos teus. E eu ouvi no fundo da minha cabeça um estalo sinalizando a tragédia. E pensei que talvez sim. Pensei que se sobrou força pra você me puxar pelo pulso, se sobrou vontade para eu me deixar levar, pensei que sim, que ainda haveria uma possibilidade de amar. Ouvi de novo o estalo, e senti meu coração dilacerado batendo aos poucos. E pensei novamente que sim: corações dilacerados batem, e batem forte. E teorizando assim, que meu peito ainda pulsava, fechando os olhos, quebrando o olhar, permitindo que você me puxasse para mais perto ainda, me entreguei, enfim, àquela tragédia.


Lírios

junho 5, 2010

Espero te alcançar. Não pude escrever nada antes de agora. Pois não alcançava o estado para escrever. Hoje alcancei, talvez pelo dia três de novembro e a madrugada me matando aos poucos. Me matando a cada quatro da manhã que seu sorriso não me deixa dormir. E pensei que espero que meu estado de agora, que o meu escrever de agora te alcance de alguma forma. Espero poder te alcançar. E quando digo alcançar, não falo alcançar querendo somente que você leia isso e pense em mim, no que fomos, no que nunca deixamos de ser e no lugar no qual nunca voltaremos a pisar, embora sonhe todo dia em caminhar novamente pelo seu mundo. Mas não quero esse simples pensar, e digo que, se for assim, melhor esquecer. Quero te alcançar de um jeito de tremer suas pernas, de fazer gritar o coração, porque se você treme, eu tremo. Se trememos não estamos seguros e se não estamos seguros, estamos bem. Eu estou bem. Apesar daquela coisa que atormenta, daquela coisa que se ausenta. Você sabe o que é aquela coisa? É. Você.    Talvez não você exatamente, mas sim a saudade de você, a lembrança de você, o amor de você. E me pego pensando, às vezes de mansinho, às vezes quase em ódio, às vezes ao ler um livro, ou ao entrar em algum lugar e sentir um perfume que me lembra o teu, ou quando vejo um lírio jogado no chão, nosso lírio jogado ao chão. Lembro de você, penso em você, vivo em você, pensando que você ainda vive em mim. Em cada curva do meu corpo e em cada lugar que meu olhar mira. E acho triste que só possa lembrar de você quando estou com a cabeça cheia, ou quando um lírio cai. Acho triste que tenha que ser tudo tão assim, tão incerto, tão pesado, tão lírios-jogados-ao-chão. Não posso mais sentar na varanda, fumar um cigarro e pensar em você. Lembrar dos seus passos descendo as escadas daquela casa naquele vestido preto. Não posso. Se penso em você assim, de cabeça vazia, assim, tão vulnerável, eu tombo, eu me inclino, eu caio, e não volto. Não volto nunca mais. E ao mesmo tempo que penso em não cair, penso todo dia em voltar, e lhe trazer o sol, apoiar os pés na areia como no último verão. E ouvir você reclamar do seu caso de amor atual, enquanto eu reclamo da areia grudada nos meus pés, observar o silêncio escondido atrás da minha vontade de te abraçar pra não deixar mais você ir embora, e quem sabe deitar com você, e contar estrelas, e contar histórias, e contar amores passados, e contar lírios em casamentos e rosas em funeráis.
Espero te alcançar, do mesmo jeito que te alcanço em meus sonhos, e na verdade nem precisa ser sonhos, é só fechar os olhos. Te alcanço e você é tão minha em meu pensamento, que quando abro os olhos novamente parece impossível que eu não te tenha mais. Sei que você nunca foi minha, e talvez se eu tivesse me doado um pouco mais… Te abraçado mais forte na hora de ir embora, talvez se eu pegasse sua mão agora e contasse que eu sonhei com seu rosto ao lado de lírios… Talvez se… Sei que mesmo sem certeza alguma parece inadmissível que minhas mãos tenham soltado as tuas.
Mas soltaram. Talvez não as minhas, mas as tuas, talvez as duas juntas, ao mesmo tempo. Na mesma tristeza de não poder mais. E agora só te alcanço em pensamento, enquanto me seguro tentando não pensar.

Mas não fico triste. Tenho as memórias, tenho as lembranças, tenho os lírios em um pote com água, tenho os espinhos das rosas de funeráis. E nem eles me machucam. Tenho meus pensamentos e nossas mãos dadas em sonhos. E falo com você todo dia em pensamento. Não dói. Dói depois, quando vejo que é pensamento. Mas na hora não dói. E você me conhece, prefiro o presente. E se é esse meu presente, e se é agora que estou bem. É agora que não dói. Então digo quê.
Esses dias fumei um baseado com a Luísa e ela falou muito em ti, contou umas histórias tristes sobre como você anda sozinha, porque você e aquela guria não conseguem se acertar. Às vezes vejo tão somente para o meu interior que não consigo olhar pra nenhum outro lugar que não seja você dentro de mim, e penso que lembro tanto de você, que esqueço que os outros também te conhecem, penso que você é só minha nesse mundo, mas só penso… Sei que não é. Falamos muito em ti. E logo, logo os gigantes vieram tentar tirar você de mim. Isso dói. Dói muito tentar te esquecer. Por isso não tento, só lembro. E você se acende às vezes dentro de mim. E esse às vezes tem sido tão freqüente. Mais de madrugada, ou nas raras vezes que acordo de manhã. Mais nos sonhos. Sempre em mim. Sempre você.
Pensar em ti não dói. Lembrar de ti não dói. Por mais que seja triste. Parece que a tristeza me consola. Pois se essa tristeza é a única forma de ter ainda um pedaço de ti guardado em mim, escolho a tristeza, sem nem hesitar. E eu nem me preocupo se você pensa em mim ou não. Continuo pensando em ti. Pesando em voltar. Tentando não cair. Pesando que amanhã talvez eu te encontre, e a gente possa sentar para conversar sobre as nossas vidas tão casuais. E imagino você segurando minha mão, enquanto eu falo devagar pra você que juntei um lírio do chão. E que isso é tão nós. Isso, assim, de juntar lírios do chão e chegar em casa e te mostrar dizendo olha-o-que-eu-encontrei-na-rua. E no meu sonho, do jeito que sempre sonhei, você diria oh-que-bonito e poria o lírio em um vaso com água. E eu guardei o vaso, e os lírios. E as lembranças. E você? Será que guardou alguma coisa? Aquele cartão-postal eu só pensei em enviar… Eu guardei a carteira de cigarro que você fumava naquela primeira vez. A nota fiscal daquela cerveja que dividi contigo. Sem contar as lembranças. Sua mão na minha com o vento do litoral. Meus beijos nos seus beijos, em que eu sempre pensava: dessa vez, por favor, que esse beijo nunca acabe. Você descendo as escadas com aquele vestidinho preto na manhã seguinte. Você guardou alguma coisa? Algo assim tão bobo e que pra mim é tanto. Ou sou só eu que me afundo nessas coisas bobas e boas? Mais bobas do que boas, provavelmente. Mais minhas do que suas. Mais lembranças do que certezas. Mais passado do que presente. Mais você em mim. Mais pensamentos. Não dói.
Meus pensamentos não dóem. Eles são tão suáves, tão amenos, tão leves. As vezes levanto a cabeça do livro que leio e repito seu nome. Flor, Flor, Flor… Mais que três vezes. Tantas vezes. Tão baixo. Só pra eu ouvir. Florença, você guardou aqueles lírios? E repito tantas vezes tantos planos que eu sozinha planejei. Acordar tarde pra contarmos as estrelas. Você nunca se lembra.
Eu lembro. Os lírios no chão, os espinhos no peito, o sol estampado, as estrelas no céu, o cigarro aceso entre seus dedos, o baseado na mão da Luísa, os gigantes na minha cabeça, os vaga-lumes, as pequenas epifanias do Caio, a brisa da madrugada, os dragões, os fantasmas, os moinhos. Os lírios. Jogados, caídos, pisados. Você se lembra?   Você pensa em voltar?
Flor, eu espero te alcançar. Espero te alcançar…


Entre a lua cheia e a lua nova.

junho 5, 2010

Acedeu outro cigarro, porque meia-noite e uma guitarra arranhando a vitrola exigem outro cigarro. Articulou com as mãos falando sobre o acaso, dissertando sobre o inesperado sobre e como é bom encontrar alguém por obra do destino. Na mesma hora lembrei de como nos conhecemos, e um segundo depois você perguntou se me vinha à cabeça aquele carnaval em que você se aproximou. Você disse baixinho que era verão e você me ofereceu um cigarro, eu completei, em tom grave, dizendo que era carnaval e eu lhe jurei amor eterno, e nós dois calamos sabendo, e sabendo também do conhecimento do outro, que nos amamos eternamente durante aquela noite. Daí pra diante, você se guiou sozinha nas palavras. Sabe esses tais laços que prendem as pessoas, você me perguntava atropelando as letras, é, essas coisas de a gente se prendeu e traímos nossos princípios, eu sempre disse que separação não era comigo, sempre fui fundo em qualquer relacionamento, você era diferente, parecia uma bóia e o oceano era o nosso amor, se é que posso chamar assim, você navegava por cima dele, mas nunca esteve exatamente nele, sabe? E eu sempre soube, mas nunca fui capaz de fazer você afundar, até por saber que a própria ação de deixar a superfície lhe traz medo, e até já atribui à ação uma forma negativa. Mas enfim nos amamos, e não sei até onde deu certo, se é que um dia chegou a ser assim, mas foi bom pros dois, posso dizer, mas ficou aquele mal-estar, sabe, aquela coisa de não-terminou-completamente, ficou faltando, entende? Eu disse que entendia, e entendia realmente, só que não me importava.

Eu tentei trocar o assunto pra fugir do compromisso de me responsabilizar pelo que você me dizia. Disse que a lua estava cheia, e você, analisando o horário no relógio de pedra, falou algo sobre como ela não estava mais completamente cheia, e como seu auge havia sido semana passada, e fazendo, com as mãos, um gesto de algo se encolhendo, você disse de um jeito intelectual que ela estava minguando. A essa altura eu já via em seus olhos que nem você mais sabia se falava da lua ou se si própria. E na lua que aos poucos ia diminuindo, de alguma forma, eu via um pouco do seu rosto. Não seu rosto exatamente. Mas via nas manchas, nas crateras, na forma, nas luzes, nas cores alguma coisa que me lembrava um pouco dos seus olhos, do seu nariz, da sua boca. Não do jeito que estavam agora, mas do jeito que um dia foram. Um dia algo tão bonito, mas aos poucos aquela expressão de felicidade foi se esvaecendo. Não sei porquê, não sei quando. Nunca soube exatamente quando foi que aquela forma bonita começou a minguar. Você disse que sabia. Que desde o começo que me teve ao lado teu passou a se acabar. Foi indo aos poucos para um lugar que não sabia onde era, mas sabia que era uma espécie de fim, uma espécie de fundo de poço. Você disse quase sussurrando ao pé do meu ouvindo que era frustrante não conseguir fazer com que eu afundasse de fato naquele nós-dois e só, naquele instante, naquele momento, naquela coisa que havia ( se é que havia) entre nós. Disse que tentou de tudo, que apertava firme minhas mãos tentando passar um pouco de calor,e tentando que, com aquele calor, um pouquinho de ti passasse também, para mim. Como uma tentativa de gravar na pele o que que você queria gravar no coração. Que passava a mão sobre minhas pálpebras toda vez que me beijava, pois sabia que eu nunca fechava meus olhos por mim mesma. Que tentou do fundo do coração me puxar pra baixo daquele calor ou daquele amor ou daquela dor como eu costumava chamar. Nessa hora você parou, tragou o cigarro umas três vezes seguidas e senti que até deixou de olhar pra mim, o que era coisa rara de você fazer.

Nós ficamos em silêncio uns dois minutos, enquanto você fumava tão determinada e eu dirigia minha mão até o maço pra botar algo pra dentro de mim que não fosse aquelas palavras que você dizia. Não que elas me machucassem. Mas me sentia mal pelo fato de não me sentir mal, com o fato de eu não me importar com as suas quase-lágrimas, com toda aquela sua forma que um dia foi tão bonita, mas que hoje era um fundo de poço ou qualquer coisa assim. Finalmente você falou. Perguntou se eu entendia o porque de toda aquela mudança, toda aquela inominável situação de estar se fechando, de estar minguando durante alguns dias, ou semanas, ou de acordo com a lua. Eu disse que entendia, e entendia realmente, só que não me importava.

Eu não sei porque mas no meio daquela sua tristeza senti uma vontade de te abraçar. Na verdade, não era exatamente uma vontade, foi algo que caiu em mim mais como uma obrigação do que qualquer outra coisa. Resisti um pouco, não sabia como você ia encarar uma iniciativa assim vinda de mim, não sabia exatamente onde encaixar as minhas vontades bonitas em você. Não que eu não quisesse, mas sua dor era algo que eu jáa estava acostumado, e minha parte bonita nem tinha mais espaço no meio de tanta dor. E eu te olhava, ou pelo menos meus olhos miravam seu corpo, não sei se realmente te olhava, pois olhar é diferente, acho que eu precisava me importar pra conseguir realmente te olhar e realmente te ver. E eu queria me importar, porque seria mais fácil e eu me afundaria no tal oceano e nossos corpos se uniriam como se uniam as fumaças que saíam dos nossos cigarros, e nós nos misturaríamos e seríamos, então, um só. E subiríamos pra algum lugar ou desapareceríamos no ar, do mesmo jeito que a fumaça subia e desaparecia. E seria bom como o prazer da primeira tragada pra um viciado ou como o prazer de um orgasmo, ou de algo que eu nunca havia vivenciado, mas eu tinha certeza de como seria, mesmo sem saber o que era. E você olhava pro chão, e dizia e quase gritava que sabia que eu não me importava, que sabia que eu ia pra sempre ser aquela bóia, por cima do oceano, imutável, inalterável. E dizia que mesmo assim não conseguia soltar a minha mão, que queria minha ajuda, que ainda tinha esperança, que se tem alguma coisa que eu havia lhe ensinado era a acreditar, pois se não fosse isso, você nunca estaria ao meu lado e eu te olhava, ou melhor, meus olhos miravam seu corpo, e você batia na minha cara, pedindo algo além de toda essa indiferença, alguma prova de que sua esperança não era em vão, algo concreto, e não só esses beijos de olhos abertos sempre soavam tão falsos e tão vazios. E você gritava por ajuda. Pedia que eu preenchesse esse vazio que estava dentro de ti, e depois dizia que estava errada, que não era isso que queria, pois o seu vazio estava preenchido, cheio de esperanças bestas e uma fé inabalável de que um dia eu afundaria. E você pedia, então, que eu deixasse você preencher esse vazio dentro de mim, que era isso que eu precisava. Alguém que me beijasse de olhos fechados e que segurasse firme minha mão. Alguém que me fizesse afundar.

Nessa hora eu me levantei, acho que cheguei até a lhe empurrar e você caiu de costas no chão. E eu pensei em te ajudar, mas eu realmente não podia. Eu gritei bem alto pra que você calasse a boca. Que não havia porra de vazio nenhum dentro de mim. Virei as costas e enquanto ouvia seus soluços minguando no meu ouvido eu pensei que eu entendia tudo. E que você estava certa. Que eu precisava de alguém como você, que me mostrasse como afundar, que me desse um pouco de vida, que batesse na minha cara até eu acordar. Você estava certa. Eu realmente tinha um vazio enorme dentro de mim.  Só que eu não me importava